Abandono afetivo é termo hoje
encontrado com relativa frequência no âmbito forense e nos mais
variados manuais de direito de família.
Em resumo, consiste na indiferença afetiva dispensada por um
genitor a sua prole, um desajuste familiar que sempre existiu na
sociedade e, decerto, continuará a existir, desafiando soluções de
terapeutas e especialistas.
O que é relativamente recente, contudo, é a transferência dessa
contenda própria do ambiente familiar para as salas de audiências e
tribunais país afora, essencialmente sob a forma de indenizações
pecuniárias buscadas pelo filho em face do pai, ao qual se imputa o
ilícito de não comparecer aos atos da vida relacionados ao
desenvolvimento social e psíquico de seu descendente.
O Superior Tribunal de Justiça terá a inédita oportunidade de
uniformizar o entendimento acerca do tema por ocasião do julgamento dos
EREsp 1.159.242/SP, de relatoria do eminente ministro Marco Buzzi,
previsto para esta quarta-feira (9/4), na 2ª Seção - Direito Privado.
A primeira vez em que a corte deliberou sobre o tema foi no
julgamento do REsp 757.411/MG, relatado pelo ministro Fernando
Gonçalves. O caso foi julgado pela 4ª Turma, no dia 29 de novembro de
2005, tendo aquele Colegiado, por maioria de votos, sufragado a tese de
ser incabível a indenização por abandono afetivo.
O voto condutor apoiou-se em dois fundamentos: a) a consequência
jurídica do abandono e do descumprimento dos deveres de sustento, guarda
e educação é a destituição do poder familiar (artigo 24 do Estatuto da
Criança e Adolescente e artigo 1.638, inciso II, do Código Civil), não
havendo espaço para a compensação pecuniária pela desafeição; b) a
condenação ao pagamento de indenização, na contramão dos mais nobres
propósitos imagináveis, consubstanciaria exatamente o sepultamento da
mínima chance de aproximação entre pai e filho, seja no presente ou
futuro.
Essa tese foi reafirmada por ocasião do julgamento do REsp
514.350/SP, relatado pelo ministro Aldir Passarinho Junior, na 4ª Turma,
em 28 de abril de 2009.
Porém, no primeiro semestre de 2012, a 3ª Turma abraçou
entendimento contrário, tendo sido acolhida a possibilidade de
indenização do abandono afetivo (REsp 1.159.242/SP, relatado pela
ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 24 de abril de 2012). A
ilustrada relatora, no que foi acompanhada pela maioria dos demais
integrantes do colegiado, consignou que o chamado abandono afetivo
constitui descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e
companhia, presente, implicitamente, no artigo 227 da Constituição
Federal, omissão que caracteriza ato ilícito passível de compensação
pecuniária. Utilizando-se de fundamentos psicanalíticos, a eminente
relatora afirmou a tese de que tal sofrimento imposto a prole deve ser
compensado financeiramente.
Diante do dissídio jurisprudencial entre as 3ª e 4ª Turma do mesmo
Tribunal, a Segunda Seção do STJ apreciará os embargos de divergência
(EREsp 1.159.242/SP).
O julgamento é importante e realça o papel do Tribunal da
Cidadania, no sentido de uniformizar a jurisprudência nacional como
último intérprete da lei federal. Certamente, ambas as posições têm seus
pontos virtuosos e merecem detida reflexão.
A professora Maria Berenice Dias foi no cerne da questão: “os
grande desafio dos dias de hoje é descobrir o toque diferenciador das
estruturas interpessoais que permita inseri-las em um conceito mais
amplo de família. Esse ponto de identificação é encontrado no vínculo
afetivo”.
A posição quanto a não indenização tangencia pontos sensíveis
acerca do tema, notadamente a indesejável intervenção do Estado na
família e a desjudicialização das relações sociais.
Em outras palavras, o direito de família deve observar uma
principiologia de intervenção mínima neste campo — pois envolvem bens
especialmente protegidos pela Constituição, como a intimidade e a vida
privada —, erguidos como elementos constitutivos do refúgio impenetrável
da pessoa e que, por isso mesmo, podem ser opostos à coletividade e ao
próprio Estado.
Finalmente, a migração para os tribunais de temas antes
circunscritos ao ambiente familiar merece mesmo reflexão não somente de
juristas, mas de terapeutas e cientistas sociais, como forma de análise
da família no contexto do novo milênio.
Assim, realizada essa breve abordagem acerca das posições contrária
e favorável da indenizabilidade do abandono afetivo, é mesmo hora
propícia para que o Superior Tribunal de Justiça uniformize a
jurisprudência sobre esse delicado tema.
De toda sorte, independentemente da conclusão a ser obtida no
julgamento dos EREsp 1.159.242/SP, o debate ora estabelecido parece, de
fato, confirmar que a chamada “modernidade líquida”, segundo Bauman,
promove uma progressiva eliminação da "divisão, antes sacrossanta, entre
as esferas do 'privado' e do 'público' no que se refere à vida humana”.
Autor: Luis Felipe Salomão
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